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Carla Dórea Bartz

Não Olhe Para Cima: o fim do capitalismo se aproxima


Alienação de classe: Jennifer Lawrence, Leonardo DiCaprio e Timothée Chalamet em Não Olhe para Cima. Foto: Divulgação.

"Alguém disse certa vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo", afirma Fredric Jameson em seu texto de 2003, Future City. (1)


A repetição sem fim dos enredos apocalípticos no cinema americano revela um sintoma particular desta sociedade que é a incapacidade de criar histórias que enfrentem a contradição principal do nosso momento histórico: o capitalismo é um meteoro ao qual os Estados Unidos morrerão abraçados levando o resto do mundo junto.


Esta é a conclusão que chegamos ao final do mais recente filme-catástrofe produzido por Hollywood: Não Olhe Para Cima (Don´t Look Up), dirigido por Adam Mckay, o mesmo de A Grande Aposta (The Big Short, 2015), uma tentativa de explicar o apocalipse financeiro de 2008.


Nos dois filmes, a mesma receita: é a indigência moral de indivíduos canalhas que leva a catástrofes que seriam evitáveis. Desta maneira, conclui-se que se os canalhas deixarem de existir poderemos todos nos salvar e voltar para as nossas vidas felizes.


Ledo engano. Não é a burrice boçal individual que causa os problemas sociais em um sistema econômico tão contraditório quanto o capitalismo. É o contrário: uma sociedade capitalista precisa de indivíduos imbecis para existir e se manter.


A subjetividade cretina, em especial da burguesia e dos que a servem com fidelidade canina, é a única possível no capitalismo e a catástrofe é o único final plausível.


É por isso que Não Olhe Para Cima, apesar das boas intenções, não consegue ir além dos seus antecessores. Parece mais do mesmo. Isso explica a abordagem farsesca e irônica dos materiais apresentados e as explícitas citações, na linha do pastiche pós-moderno, a outros filmes com temas semelhantes.


Das várias citações, duas chamam atenção. Em Armagedom (Armageddon, Michael Bay, 1998), Bruce Willis é o herói que salva o planeta de um meteoro, com a ajuda da Nasa e do Pentágono, em um alinhamento com o governo impensável no atual momento. Em Não Olhe para Cima, este herói é o fascista Benedict Drask (o ótimo Ron Perlan).


Em Interestelar (Interestellar, Christopher Nolan, 2014), o clima é o inimigo mortal. No entanto, o resultado é uma das obras mais fascistas já produzidas pela indústria cinematográfica americana. O filme chega a sugerir genocídio como forma de salvar a espécie humana e transforma uma das luas de Saturno no Kansas. Mckay o ridiculariza na cena final de seu filme.


Uma das diferenças de Não Olhe para Cima em relação a seus antecessores é o fato de que, no mundo real, uma catástrofe de fato está acontecendo e ela está próxima das pessoas ricas de Hollywood. Não é preciso mais imaginar qual seria a reação da sociedade e dos governos diante do imponderável.


Como a pandemia de Covid-19 e o aquecimento global não são frutos da imaginação criativa, Mckay pode se concentrar em representar a reação social que ele mesmo está vivendo na prática. Neste sentido, para muitos que se identificam com sua premissa, visto que vivemos diariamente uma realidade de absurdos, o filme acaba ajudando a desopilar o fígado. “Lava a alma”, como dizem alguns. Porém, as coisas não são tão simples.


O diretor faz parte de um círculo de indivíduos que no Brasil caracterizaríamos de esquerda light. São os “liberals”, em inglês. Neste grupo, estão alguns atores como Leonardo DiCaprio e Meryl Streep. Inclui também Brad Pitt, de A Grande Aposta. Todos poderosos, muito ricos e filantrópicos.


DiCaprio é um ativista político, defensor de causas ambientais e até teve entreveros com Bolsonaro há algum tempo. No entanto, o problema dessa gente e de suas pretensões políticas é que em sua maioria eles estão alinhados com os políticos do Partido Democrata. E não há nada mais equivocado.


Ao focar seu filme no anti-Trumpismo, Mckay poupa os Democratas como detentores de um bom senso que eles estão longe de ter. O partido serve à sujeira capitalista tanto quanto o Partido Republicano de Trump, mas o faz a partir de um discurso hipócrita que usa e abusa dos termos ligados à democracia e aos direitos humanos de modo a posar de civilizado.


O Partido Democrata americano é formado por capitalistas assassinos, genocidas e fazedores de guerra. O Partido Democrata controla atualmente o discurso politicamente correto e é o responsável pelo atual identitarismo moralista, do qual boa parte da esquerda brasileira se apropriou com gosto. O Partido Democrata deu um golpe de estado no Brasil em 2016 como estratégia imperialista contra os BRICs e de submissão do país aos interesses das corporações americanas.


No caso do identitarismo moralista, a escalação de Meryl Streep para viver a oportunista presidente Orlean, retratada como um Trump de saias, é um pastiche, mas de sua performance como Margareth Thatcher em A Dama de Ferro (The Iron Lady, Phyllida Lloyd, 2011). A inglesa foi a genitora da perversão neoliberal do capitalismo, mas Meryl a retrata como uma mulher de fibra.


“Todos os dias, chove pedras na cabeça dos trabalhadores”, diz um personagem de Chuva de Pedras (Raining Stones, Ken Loach, 2011), um filme que retrata como ninguém a situação da classe operária inglesa depois dos anos Thatcher (leia nossa análise aqui). Uma simples comparação entre essas duas chuvas de pedras – a farsesca de Mckay e a consciente de Loach – mostra como a adesão ao sistema está presente no primeiro.


Nunca existiu, não existe e nunca existirá capitalismo ético, democrático, humano ou qualquer bobagem usada como paliativo para um sistema econômico que apela para o horror e o grotesco cotidianamente. Centenas de milhões de pessoas sentem isso na pele todos os dias, com ou sem pandemia ou aquecimento global.


Este é o motivo pelo qual, no universo social de um cineasta como Mckay, a solução para o dilema em seu filme é interditada ou não pode ser imaginada. Trata-se de uma escolha política. Este interdito chama-se socialismo. Algo que a esquerda light cooptada nem pensa em cogitar. Por isso, em sua fantasia, não há alternativa e seus personagens só podem morrer. "Nós tentamos tudo", diz a personagem de Jennifer Lawrence no final resignado.


É fato histórico que seria muito mais fácil destruir o meteoro do que deixá-lo nos destruir. Para começar, seria importante parar de olhar para o futuro como distopia e começar a pensar em utopia, ou seja, imaginar que podemos superar os limites do atual sistema econômico e substituí-lo por um mais racional. Precisamos querer - de maneira coletiva - outro final. É o óbvio.


Que mal há um mundo onde quem trabalha seja o real proprietário dos frutos do seu trabalho? Onde idosos e crianças sejam assistidos e bem tratados? Onde não haja fome? Onde sistemas de saúde sejam acessíveis e gratuitos a todos? Onde não haja divisão de classes? Onde a riqueza produzida por todos não esteja concentrada nas mãos de poucos?


Ou o que queremos mesmo é o final reacionário de Não Olhe para Cima? Sentar e rezar, de cabeça baixa, à espera de um milagre que certamente não virá?


Streaming

Não Olhe Para Cima está no Netflix.


(1) Observações sobre as origens e usos desta frase:


"It has recently become something of a cliché, at least on the Left, to cite the claim, first made by Fredric Jameson in Seeds of Time (1994), that in the current conjuncture it is easier to imagine the end of the world than the end of capitalism. “Someone once said,” Jameson writes in “Future City” (2003), where he recapitulates and revises the point, and where it becomes apparent that he is probably misremembering some comments made by H. Bruce Franklin about J. G. Ballard, “that it is easier to imagine the end of the world than to imagine the end of capitalism. Slavoj Žižek has frequently repeated this provocative claim, in articles, books, and interviews."

(BEAUMONT, Matthew. (2014) Imagining the End Times: Ideology, the Contemporary Disaster Movie, Contagion. IN: Flisfeder M., Willis LP. (eds) Žižek and Media Studies. Palgrave Macmillan, New York, p. 6.


"It seems to be easier for us today to imagine the thoroughgoing deterioration of the earth and of nature than the breakdown of late capitalism; perhaps that is due to some weakness in our imaginations."

(JAMESON, Fredric. Seeds of Time. Columbia University Press, 1994. p. xii)


"Someone once said that it is easier to imagine the end of the world than to imagine the end of capitalism. We can now revise that and witness the attempt to imagine capitalism by way of imagining the end of the world."

(JAMESON, Fredric. Future City. IN: New Left Review 21, May/June 2003, p. 76)


“Watching Children of Men, we are inevitably reminded of the phrase attributed to Frederic Jameson and Slavoj Žižek, that it is easier to imagine the end of the world than it is to imagine the end of capitalism.”

(FISHER, Mark. Capitalist Realism: is there no alternative? Winchester: Zero Books, 2009, p. 2)


Este livro de Mark Fisher foi lançado no Brasil em 2020 pela editora Autonomia Literária com o título Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?, frase usada também como título do primeiro capítulo. Note-se que Fisher não diferencia de quem é a frase: Jameson ou Žižek. De acordo com Beaumont, Jameson usa esta ideia desde 1994 a partir de referências ao historiador de esquerda americano H. Bruce Franklin sobre a obra do escritor inglês J.G Ballard, que ficou conhecido por seus livros de ficção científica apocalípticos.

O filme que Fisher cita é Filhos da Esperança (Children of Men, Alfonso Cuarón, 2006).



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